Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é um arremedo da lembrança anterior. A própria fisionomia de Matilde, um dia percebi que eu começava a esquecê-la, e era como se ela me largasse novamente. Era uma agonia, mais eu a puxava pela memória, mais sua imagem se desfiava. Restavam dela umas cores, um ou outro lampejo, uma lembrança fluida, meu pensamento em Matilde tinha formas vagas, era pensar num país e não numa cidade. Era pensar no tom da sua pele, tentar aplicá-lo em outras mulheres, mas com o tempo também fui esquecendo meus desejos, cansei das revistas ilustradas, perdi a noção de um corpo de mulher. [...] já não rolava durante o sono para acordar no lado direito da cama, onde o colchão permanecia côncavo dela. [...] Mesmo vivendo em habitação de um só compartimento, num endereço de gente declassificada, na rua mais barulhenta de uma cidade-dormitório [...] em momento algum perdi a linha. Usava pijamas sedosos com o monograma do meu pai, e não dispensava um roupão de veludo para caminhar até o alpendre no quintal, onde fazia minha higiene num banheiro com paredes chapiscadas e chão de cimento. [...] E foi nessas circunstâncias que tive uma tardia e talvez derradeira visão de Matilde, à maneira de uma visita da saúde. Debaixo de um filete de água, eu me transportava ao nosso banheiro do chalé, sonhava com seu chuveiro copioso. Diante de uma parede sem emboço, eu sonhava com cavalos-marinhos nos azulejos, com as louças inglesas do nosso antigo banheiro, quando sem esforço algum me aconteceu de relembrar Matilde da cabeça aos pés. Ela me figurou com seu corpo de dezessete anos sob o jorro de água quente, puxava os cabelos para trás e apertava os olhos, para não entrar sabão. Recordei-a envolta no vapos, já me escancarando os olhos negros, recordei seu sorriso preso nos lábios, seu jeito de encolher os ombros e me chamar com o dedo indicador, e cheguei a crer que ela me chamava para o outro mundo. Recordei seu movimento de corpo, ao se encostar nos cavalos-marinhos da parede, o sutil balanceio dos seus quadris, e de repente me senti dotado de uma força que fazia anos já não tinha.Chico Buarque em Leite Derramado

Solidão, desejos ainda não concretos, expectativas... O que tem aqui dentro eu não sei, mas Janeiro está, de alguma forma, me deixando perder a razão em várias estradas que não reconheço.
O que eu quero agora?
Um comentário:
Janeiro tb me sufoca. Ao menos o atual.
Mas, lutemos. Com o suor do calor, com o suor do esforço.
E que o "olhar adiante" nos traga a paz necessária.
Anônimo de sempre.
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